Quando se entra naquela livraria de obras antigas, com cheiro de páginas lidas e relidas e títulos que parecem fundamentais só pela imponência da capa de couro, pode-se ter a impressão de que se trata apenas de mais um sebo do centro de São Paulo. O que não se imagina é que naquelas estantes estão décadas de dedicação, investimentos e empenho de colecionadores e bibliófilos em encontrar as obras mais especiais. São as bibliotecas pessoais - que a Livraria Calil, descrita acima, comercializa -, que movimentam um mercado vultoso e internacional.
A diferença básica desta livraria para as outras é a preferência por vender bibliotecas pessoais inteiras, sem desmembrá-las - embora haja também obras avulsas nas prateleiras. Ali, estão acervos que valem de US$ 120 mil a US$ 2 milhões. Na verdade, falar em dólar está desatualizado. A compra e a venda de acervos valiosos são agora em euros.
"O mercado está globalizado. Recebi ofertas da Turquia e dos Estados Unidos por algumas coleções, mas preferi não vender. Acho que essas obras devem ficar no Brasil", explica Maristela Calil, herdeira da livraria e hoje sua administradora. Ela explica ainda o que distingue uma biblioteca pessoal de um lote: a biblioteca tem mais de mil volumes.
Entre as coleções mais significativas sob sua tutela está a do próprio pai, Líbano Calil. "Já avaliaram o acervo como o terceiro mais importante do Brasil, atrás do de José Mindlin e da família Safra", diz Maristela. São 15 mil volumes sobre assuntos brasileiros, encaixotados à espera de um comprador. Maristela já tentou vender para os governos federal, estadual e municipal. Sem sucesso. "O diretor da Biblioteca Nacional me disse que compraria se eu encontrasse um patrocinador", espanta-se Maristela. Com a coleção do pai, seriam vendidas as bibliotecas do jurista e agitador cultural Luiz Arrobas Martins, com 14 mil volumes, e do professor José Pedro Galvão de Sousa, com 7 mil. A do ex-prefeito de São Paulo, José Carlos de Figueiredo Ferraz, também está lá, mas seus familiares autorizaram que as obras fossem vendidas separadamente.
Famílias que optam por vender bibliotecas, e não doá-las, acreditam que o trabalho de uma vida inteira do bibliófilo tem valor e merece um preço. Muitas vezes, são famílias tradicionalíssimas, que, por estarem em dificuldades financeiras, preferem não falar. "Como são, em geral, pessoas conhecidas no meio social ou universitário, elas não gostam de ser identificadas para não serem mal interpretadas", afirma Eurico Brandão Júnior, do sebo Brandão. Ele afirma que chega a comprar cinco bibliotecas assim por mês - geralmente com mais de 2 mil exemplares cada. "Paguei R$ 15 mil pela última, que tinha acervo de 3 mil volumes, de História, Sociologia e Filosofia."
Também há quem prefira vender a coleção para instituições de renome, justamente para ter a garantia de que o acervo não se perderá - e ficará bem cuidado. "Minha família decidiu que venderia a biblioteca de 15 mil volumes de meu pai (o crítico literário João Alexandre Barbosa, morto em 2006) ao Instituto Moreira Salles, porque eles demonstram ter um cuidado técnico muito grande", afirma filho, o poeta Frederico Barbosa.
Novos ricos. Já os compradores variam de perfil: podem ser professores universitários, intelectuais, escritores, colecionadores de raridades - os mais fanáticos até checam sistematicamente os obituários dos jornais para ver se algum notório bibliófilo morreu e sua biblioteca entrará no circuito. E, cada vez mais, novos ricos que precisam de uma biblioteca respeitável para as recém-compradas mansões. "Já vendi uma biblioteca a um banqueiro que comprou sem nem ver os livros", lembra Maristela.
Há um esgotamento, inclusive de espaço, nas livrarias. "Para estocar um livro em São Paulo, excluindo a manutenção e a mão de obra, gastam-se mensalmente R$ 0,05 por unidade", explica Gunter Zibell, da livraria Bibliomania.
Líbano Calil passou 50 anos procurando títulos muito específicos, que compusessem um acervo especializado em assuntos brasileiros. A biblioteca está à venda há 17 anos. "Alguém pode considerar esse dinheiro empatado. Um livreiro, como eu, considera que está investido", argumenta Maristela.
(do jornal O Estado de São Paulo)
Enviado por Sandra Mueller.
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