O que a maioria dos artigos vem discutindo é uma reação à profecia de que a prática de impressão de livros está a caminho do fim. Existe uma quase unanimidade quanto a isso; quase todos afirmam que, não, o livro não vai acabar, nem o livro impresso, nem o artefato "livro" em si. A meu ver, essa é uma discussão despropositada, uma vez que, por um lado, o livro eletrônico (ou digital, se preferir) não ameaça o artefato, muito pelo contrário, torna o livro mais rapidamente acessível. Por outro lado, o ser humano é perfeitamente capaz de se adaptar às novas práticas sociais e a leitura em dispositivos digitais não será a mais difícil adaptação. O que pode vir a determinar o fim dos livros impressos não depende somente do gosto, ou da vontade, dos consumidores-leitores, mas de um contexto de conjecturas políticas, jurídicas e econômicas.
O que estou dizendo pode parecer que sou inteiramente a favor do fim do livro impresso... Não, não sou, definitivamente. Prefiro ler romances em livros impressos, porque os leio geralmente em casa, devagar, saboreando-os, depois os deixo sobre a mesinha de cabeceira para tornar a pegá-los no dia seguinte ou em outro dia em que a cabeça esteja tranquila. Já os livros de teoria, de estudos, prefiro os digitais, porque copio, colo, edito, marco, ficho, e preciso carregar vários ao mesmo para poder consultar num momento de dúvida. Para mim, são duas experiências de leitura totalmente diferentes, cada uma com seu conforto próprio, que jamais disputarão o mesmo no rol de minhas preferências, porque cada um ocupa o mesmo lugar, em contextos distintos.
A discussão que me preocupa, e que não vejo sendo articulada, é outra. É a questão do direito de propriedade, que nos vai sendo tirado a olhos vistos, mas paulatinamente e silenciosamente. Meu primeiro livro digital foi o dicionário Aurélio Eletrônico que, na época, vinha em CD com um disquete de instalação. Era necessário instalar o aplicativo que estava no disquete para acessar o conteúdo do dicionário, que era acessado sempre no CD. Como não baixava no PC, era sempre aquele incômodo de ter que tirar a música que estava ouvindo (não havia ainda o MP3, nem internet com música em streaming), para consultar uma palavra, mas isso era apenas um incômodo, não vem ao caso. O fato é que sou professor de língua (portuguesa e estrangeira) e dicionário é praticamente um anexo meu. Somente depois de ter feito a compra, vi que o Aurélio vinha com direito a uma única instalação. Como assim? Um dicionário impresso eu jogava na bolsa e levava comigo. Um PC, não dá. Teria que desinstalar o dicionário no meu PC para reinstalá-lo no outro PC (do escritório ou do aluno, por exemplo). Essa limitação me causou tipos de aborrecimento e incômodos que o livro impresso jamais me proporcionou. Isso significava que eu paguei por um produto o qual o editor detinha o direito do meu uso. E o preço que paguei por ele foi o mesmo do que da versão impressa que me dava, paradoxalmente, a mobilidade de que eu precisava... Essa lógica até hoje não consigo entender. Pela primeira vez, senti que fui lesado no meu direito de propriedade.
As novas tecnologias vieram reduzir essa sensação, pois hoje tenho o Aurélio instalado no tablet e o levo comigo aonde quer que eu vá. Mas a máfia dos editoras (ou desenvolvedores de aplicativos) continua ainda assombrando meu direito de propriedade. Hoje, a prática atual é a instalação de aplicativo, que dá o acesso online ao conteúdo. Salvo exceções (o Aurélio é uma delas, que está completamente instalado – aplicativo e conteúdo), essa prática obriga o proprietário à conectividade, que nem sempre está disponível. Até mesmo o acesso a músicas hoje está fadada muitas vezes a playlists online (ou música/rádio em streaming), vendidas por provedores. Isso significa que se paga por uma coisa que só fica disponível para você enquanto o verdadeiro proprietário (no caso, o provedor) autoriza. Aluguel com cara de aquisição... Um livro físico, você compra e ele é seu. Pode fotocopiar um capítulo para rabiscá-lo ao estudar, pode carregar na bolsa para ler nas horas vagas, pode deixá-lo na estante para que seu filho o herde e depois seu neto, seu bisneto, e assim por diante.
Nesse aspecto, em dispositivos digitais jamais teremos essa forma de perenidade do conhecimento. As tecnologias mudam em velocidade absurda, não restando tempo sequer de se pensar em formas definitivas de conservação e arquivamento. A onda agora é a dos livros digitiais em PDF ou em formato de e-books. Como citei, meu primeiro Aurélio veio em disquete, que já não existe mais, e em CD, que está desaparecendo. A volatilidade dos pendrives, HDs externos, tablets e smartphones, em breve, cederão lugar às novíssimas tecnologias que já apontam no horizonte da holografia e das “nuvens”, quiçá outras inimaginadas! Então, aquele livro digital que comprei hoje não estará mais disponível para mim, assim como tudo o que tinha em disquete já não está mais acessível nas tecnologias atuais (mesmo que recuperado, um determinado conteúdo da época não será mais lido nas versões dos softwares de hoje). Fico pensando se teríamos acesso a Aristóteles e Platão, aos textos sagrados do Mar Morto, etc. se as práticas de dispositivos digitais e a dinâmica atual de direitos autorais já existissem nas respectivas épocas.
Trazendo Umberto Eco para a discussão
O que estou dizendo pode parecer que sou inteiramente a favor do fim do livro impresso... Não, não sou, definitivamente. Prefiro ler romances em livros impressos, porque os leio geralmente em casa, devagar, saboreando-os, depois os deixo sobre a mesinha de cabeceira para tornar a pegá-los no dia seguinte ou em outro dia em que a cabeça esteja tranquila. Já os livros de teoria, de estudos, prefiro os digitais, porque copio, colo, edito, marco, ficho, e preciso carregar vários ao mesmo para poder consultar num momento de dúvida. Para mim, são duas experiências de leitura totalmente diferentes, cada uma com seu conforto próprio, que jamais disputarão o mesmo no rol de minhas preferências, porque cada um ocupa o mesmo lugar, em contextos distintos.
A discussão que me preocupa, e que não vejo sendo articulada, é outra. É a questão do direito de propriedade, que nos vai sendo tirado a olhos vistos, mas paulatinamente e silenciosamente. Meu primeiro livro digital foi o dicionário Aurélio Eletrônico que, na época, vinha em CD com um disquete de instalação. Era necessário instalar o aplicativo que estava no disquete para acessar o conteúdo do dicionário, que era acessado sempre no CD. Como não baixava no PC, era sempre aquele incômodo de ter que tirar a música que estava ouvindo (não havia ainda o MP3, nem internet com música em streaming), para consultar uma palavra, mas isso era apenas um incômodo, não vem ao caso. O fato é que sou professor de língua (portuguesa e estrangeira) e dicionário é praticamente um anexo meu. Somente depois de ter feito a compra, vi que o Aurélio vinha com direito a uma única instalação. Como assim? Um dicionário impresso eu jogava na bolsa e levava comigo. Um PC, não dá. Teria que desinstalar o dicionário no meu PC para reinstalá-lo no outro PC (do escritório ou do aluno, por exemplo). Essa limitação me causou tipos de aborrecimento e incômodos que o livro impresso jamais me proporcionou. Isso significava que eu paguei por um produto o qual o editor detinha o direito do meu uso. E o preço que paguei por ele foi o mesmo do que da versão impressa que me dava, paradoxalmente, a mobilidade de que eu precisava... Essa lógica até hoje não consigo entender. Pela primeira vez, senti que fui lesado no meu direito de propriedade.
As novas tecnologias vieram reduzir essa sensação, pois hoje tenho o Aurélio instalado no tablet e o levo comigo aonde quer que eu vá. Mas a máfia dos editoras (ou desenvolvedores de aplicativos) continua ainda assombrando meu direito de propriedade. Hoje, a prática atual é a instalação de aplicativo, que dá o acesso online ao conteúdo. Salvo exceções (o Aurélio é uma delas, que está completamente instalado – aplicativo e conteúdo), essa prática obriga o proprietário à conectividade, que nem sempre está disponível. Até mesmo o acesso a músicas hoje está fadada muitas vezes a playlists online (ou música/rádio em streaming), vendidas por provedores. Isso significa que se paga por uma coisa que só fica disponível para você enquanto o verdadeiro proprietário (no caso, o provedor) autoriza. Aluguel com cara de aquisição... Um livro físico, você compra e ele é seu. Pode fotocopiar um capítulo para rabiscá-lo ao estudar, pode carregar na bolsa para ler nas horas vagas, pode deixá-lo na estante para que seu filho o herde e depois seu neto, seu bisneto, e assim por diante.
Nesse aspecto, em dispositivos digitais jamais teremos essa forma de perenidade do conhecimento. As tecnologias mudam em velocidade absurda, não restando tempo sequer de se pensar em formas definitivas de conservação e arquivamento. A onda agora é a dos livros digitiais em PDF ou em formato de e-books. Como citei, meu primeiro Aurélio veio em disquete, que já não existe mais, e em CD, que está desaparecendo. A volatilidade dos pendrives, HDs externos, tablets e smartphones, em breve, cederão lugar às novíssimas tecnologias que já apontam no horizonte da holografia e das “nuvens”, quiçá outras inimaginadas! Então, aquele livro digital que comprei hoje não estará mais disponível para mim, assim como tudo o que tinha em disquete já não está mais acessível nas tecnologias atuais (mesmo que recuperado, um determinado conteúdo da época não será mais lido nas versões dos softwares de hoje). Fico pensando se teríamos acesso a Aristóteles e Platão, aos textos sagrados do Mar Morto, etc. se as práticas de dispositivos digitais e a dinâmica atual de direitos autorais já existissem nas respectivas épocas.
Trazendo Umberto Eco para a discussão
um livro é uma criatura frágil, sofre o desgaste do tempo, teme os roedores, os elementos e as mãos desajeitadas Então o bibliotecário protege os livros não só contra a humanidade, mas também contra a natureza e dedica sua vida a esta guerra com as forças do esquecimento. (Citado na Revista Língua Portuguesa, nº 87, de 2013).
cabe ainda a indagação sobre qual é o papel da biblioteconomia no nosso tempo... Infelizmente, não sou bibliotecônomo, mas acredito que cabe a essa ciência pensar formas alternativas de conservação do livro – e, por consequência, do pensamento – nessas novas tecnologias. Nem todos os livros impressos estão disponíveis em meio digital ainda hoje, assim como nem todos os livros impressos e digitais serão integralmente disponibilizados em futuras tecnologias, que estão logo ali. O sistema DOI (Digital Object Identifier) é um começo; mas, além de ainda restrito, é um sistema que pertence a uma instituição, o que nos leva a problemas de autorização e concessão, detenção e domínio. Tem-se fomentado muita discussão sobre direitos autorais. Com o advento da internet, o acesso ao conhecimento parece ter tido uma abertura nunca vista e esse tipo de discussão vai escamoteando, tornando invisível, o direito de propriedade do usuário-cliente-leitor, que é quem paga conta (em todos os sentidos, literal e figurado). A tendência, como a vejo, é a de que pagaremos para ter alguma permissão limitada (com restrições), temporária (por um determinado tempo), e conveniente (a quem autoriza).
Cada vez que utilizo os atuais aplicativos que restringem o meu acesso aos meus livros digitais (o Saravia e-Book Reader me permite instalação em seis dispositivos diferentes, outros, nem isso), além das novas tendências de Netflix, Muu, Terra TV e companhia (i)limitada, preocupo-me na mesma proporção. Isso significa que alugaremos os livros e filmes ad eternum. Pressinto que vai chegar o dia em que não terei mais o direito de propriedade por completo, não mais poderei levar meus livros, nem colocar filmes ou vídeos num pendrive, e levá-los a uma sala de aula que esteja offline para ilustrar um conteúdo.
Imaginem só! Não sou bobo: acho que vou imprimir meus livros eletrônicos (enquanto ainda é possível) para que meus filhos e netos e bisnetos possam ter o direito de herdá-los...
Enviado por Elir Ferrari.
cabe ainda a indagação sobre qual é o papel da biblioteconomia no nosso tempo... Infelizmente, não sou bibliotecônomo, mas acredito que cabe a essa ciência pensar formas alternativas de conservação do livro – e, por consequência, do pensamento – nessas novas tecnologias. Nem todos os livros impressos estão disponíveis em meio digital ainda hoje, assim como nem todos os livros impressos e digitais serão integralmente disponibilizados em futuras tecnologias, que estão logo ali. O sistema DOI (Digital Object Identifier) é um começo; mas, além de ainda restrito, é um sistema que pertence a uma instituição, o que nos leva a problemas de autorização e concessão, detenção e domínio. Tem-se fomentado muita discussão sobre direitos autorais. Com o advento da internet, o acesso ao conhecimento parece ter tido uma abertura nunca vista e esse tipo de discussão vai escamoteando, tornando invisível, o direito de propriedade do usuário-cliente-leitor, que é quem paga conta (em todos os sentidos, literal e figurado). A tendência, como a vejo, é a de que pagaremos para ter alguma permissão limitada (com restrições), temporária (por um determinado tempo), e conveniente (a quem autoriza).
Cada vez que utilizo os atuais aplicativos que restringem o meu acesso aos meus livros digitais (o Saravia e-Book Reader me permite instalação em seis dispositivos diferentes, outros, nem isso), além das novas tendências de Netflix, Muu, Terra TV e companhia (i)limitada, preocupo-me na mesma proporção. Isso significa que alugaremos os livros e filmes ad eternum. Pressinto que vai chegar o dia em que não terei mais o direito de propriedade por completo, não mais poderei levar meus livros, nem colocar filmes ou vídeos num pendrive, e levá-los a uma sala de aula que esteja offline para ilustrar um conteúdo.
Imaginem só! Não sou bobo: acho que vou imprimir meus livros eletrônicos (enquanto ainda é possível) para que meus filhos e netos e bisnetos possam ter o direito de herdá-los...
Enviado por Elir Ferrari.
Muito bom texto, aborda vários pontos que nós profissionais da informação deveríamos estar debatendo e refletindo e adorei a citação do Humberto Eco, como sempre ele é genial.
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