quarta-feira, 23 de maio de 2012

Bibliotecas no meio de duas polêmicas

As bibliotecas estiveram presentes em duas polêmicas que correram na internet semana passada.

A primeira foi provocada por um artigo do jornalista Luís Antônio Giron, publicado em seu blog da Revista Época no qual relatava uma experiência que considerou desastrosa ao visitar a biblioteca pública de seu bairro (não disse qual era), onde não encontrou o que buscava. O trecho que provocou dezenas de comentários, muitos irados, de bibliotecárias, foi o seguinte:

“Cheguei de mansinho, talvez pensando em reencontrar nas prateleiras os livros que mais me influenciaram e emocionaram. Topei com prateleiras de metal com volumes empoeirados à espera de um leitor que nunca mais apareceu. O lugar estava oco. A bibliotecária me atendeu com aquela suave descortesia típica dessa categoria profissional, como se o visitante fosse um intruso a ser tolerado, mas não absolvido. Eu sei que as bibliotecárias, entre suas muitas funções hoje em dia, sentem-se na obrigação de ocultar os volumes mais raros de suas respectivas bibliotecas. Bibliotecas mais escondem do que mostram. Há depósitos ou estantes secretas vedadas aos visitantes. São as melhores – e, graças às bibliotecárias, você jamais chegará a elas.”

A segunda polêmica foi a do fechamento do site http://www.livrosdehumanas.org/ por iniciativa da ABDR – Associação Brasileira de Direitos Autorais, sob a acusação de violação de direitos de autores e editores. É a terceira vez que o site é fechado por problemas semelhantes. Josélia Aguiar publicou em seu blog Livros Etc. uma entrevista com Thiago (sem sobrenome), apresentado como coordenador do site. O entrevistado responde a uma das perguntas:

“Sou estudante, recém-formado e me preparando para o mestrado da Letras-USP. Em 2009 a xerox do curso – ilegal para a ABDR, mas sem a qual ninguém consegue estudar na USP ou em qualquer outra universidade brasileira – aumentou o valor da página fotocopiada para R$ 0,15, acréscimo de 50%. Isto motivou um grupo de estudantes a compartilhar o conteúdo de suas disciplinas em sites como 4shared e mediafire. O blog funcionava como um indexador destes links.”

Ele não informa a razão pela qual “ninguém consegue estudar na USP ou em qualquer outra universidade” sem apelar para as reprografias. Eu afirmo aqui, com todas as letras: porque as bibliotecas universitárias são MUITO ruins, perdendo apenas para as bibliotecas públicas em geral na qualidade.

Antes que bibliotecárias e defensores da reprografia me ataquem, vou logo dizendo: a questão do acesso público aos livros é uma bandeira que defendo há muitos anos, e as bibliotecárias (os) NÃO SÃO responsáveis pela situação precária das bibliotecas brasileiras. E os fatos que discuto aqui também têm exceções, as sempre bem-vindas e necessárias exceções que confirmam a regra. Não quero incorrer no principal “pecado” do Giron, segundo suas atacantes, que é o da generalização indiscriminada.

Vou tentar esmiuçar um pouco as questões: Quem primeiro reconhece a situação precária do sistema de bibliotecas públicas brasileira é o próprio Ministério da Cultura, que encomendou uma ampla pesquisa, feita pela FGV, sobre a situação. O link para os dados da pesquisa é http://migre.me/9ajHC. Os dados são, literalmente, estarrecedores. No que diz respeito à crítica do Giron, vale ressaltar os seguintes dados sobre o perfil dos “dirigentes” (responsáveis) pelas bibliotecas públicas: 1% deles completaram apenas o ensino fundamental 1 (antigo primário); 2%, o ensino fundamental II (antigo ginásio); 40%, o ensino médio; e 57% completaram o ensino superior. Entretanto, apenas 11% desses dirigentes são bibliotecários (ou bibliotecônomos, ou “cientistas da informação”, como recentemente andam sendo chamados); 18% são pedagogos; 7% formados em letras; 4% em história e o resto em outras graduações.

A possibilidade de que quem o atendeu com a tal “suave descortesia” seja uma bibliotecária é bem remota. Mas isso não importa. O fato é que o nível de capacitação do pessoal de bibliotecas deixa a desejar. Não por serem bibliotecários (as). Muito pelo contrário. Trata-se simplesmente de parte do problema de qualificação geral do pessoal para o sistema. A sensação de descaso descrita pelo Giron, infelizmente, é verdade para muitas bibliotecas, e também não é verdadeira para outras. Há experiências comprovando todas. Assim como há bons e maus funcionários públicos em geral (e acredito que a maioria seja competente e interessada em bem desempenhar seu serviço ao público), existem bons e maus atendentes de bibliotecas. C’est la vie.

Dito seja que não concordo com a posição antiga defendida pelo Conselho Federal de Biblioteconomia de que o responsável por cada biblioteca deva necessariamente ter graduação na área. Considero essa posição corporativista e irreal (se o CFB mudou ou matizou sua posição, alvíssaras). Com a aprovação da lei que dá prazo para que as escolas tenham bibliotecas, não há condições de que isso seja cumprido. A solução está no desenvolvimento de sistemas nos quais profissionais bibliotecários supervisionem o funcionamento de várias bibliotecas e que o atendimento de frente seja feito por técnicos de ensino médio e VOLUNTÁRIOS. Devidamente capacitados.

Quem já visitou o magnífico prédio da Rua 42, em Nova York, principal sede da Biblioteca Pública da metrópole, sabe que praticamente todo o atendimento de frente é feito por voluntários. A maioria é de senhoras que se dispõem a doar algumas horas por semana para ajudar a Biblioteca, e só se chega a consultar um bibliotecário(a) quando se trata de questões técnicas relevantes. A Biblioteca organiza e capacita esses voluntários, de modo que haja sempre um atendimento correto, eficiente e simpaticíssimo por parte dessas senhoras voluntárias. E isso tudo diz muito também sobre a integração da biblioteca com a comunidade a que serve.

O importante é salientar que, desde antes do Censo, os responsáveis pelas políticas públicas de bibliotecas do Brasil vêm desenvolvendo esforços enormes para melhorar essa situação. Ainda existem municípios que não têm nenhuma BP, e a situação da maioria é lamentável, sem dúvida nenhuma.

Não vou aqui listar as medidas que vêm sendo tomadas pela administração do Galeno Amorim na Biblioteca Nacional, onde o Sistema Nacional de Bibliotecas conta com a colaboração de uma profissional competentíssima, Elisa Machado. Tampouco vou assumir aqui o papel de defensor do sistema de bibliotecas públicas de São Paulo, dirigido por Maria Zenita Monteiro. O sistema, sob a administração do Carlos Augusto Calil na Secretaria de Cultura, tem melhorado muito nos últimos anos, inclusive com consulta via Internet do acervo. E não é justo confundir a readequação de bibliotecas (com sua transformação em bibliotecas temáticas) com a extinção de bibliotecas. E uma boa reportagem com as duas profissionais mencionadas pode dar luz à dimensão dos problemas e dos esforços que estão sendo feitos.
Porque também tem outra coisa. Políticas públicas não resolvem os problemas (no caso, de acesso aos livros e à leitura) da noite para o dia. Sua maturação é lenta e depende também de ações na área da educação e das políticas sociais em geral. O importante é que o problema está sendo enfrentado não apenas pelos mencionados, como também por muitos outros administradores públicos Brasil a fora. O que não justifica, obviamente, que uma grande maioria pouco se importe com o problema. Na verdade, esses administradores que não colocam as bibliotecas como prioridade são parte do problema.

E o fechamento do site? São vários pontos envolvidos nisso. Em primeiro lugar, e como questão mais importante, é que as bibliotecas universitárias são, no meu entender, esquizofrênicas. Há um enorme esforço para atualização de acervos e atenção aos usuários dos programas de pós-graduação, particularmente na área das ciências naturais. As aquisições de acervos eletrônicos, de revistas técnico científicas, é muito significativa.

Mas, na área da graduação, a situação é lamentável. Não existem exemplares em quantidade suficiente para o atendimento minimamente decente para os alunos. As malfadadas “pastas dos professores” e a reprografia foram a resposta capenga para isso. Sem falar em “universidades” particulares de pequenas cidades das quais se diz que alugam bibliotecas para passar pela avaliação do MEC e receber licença de funcionamento, e que depois são devidamente devolvidas aos “empreendedores” (e põe empreendedorismo nisso!) que as alugaram. Não conheço nenhum caso concreto, mas os rumores abundam.

A ABDR foi originalmente concebida como uma instituição de licenciamento de reproduções, medida que corre paralela à defesa dos direitos autorais (que são originalmente dos AUTORES, e subsidiariamente das editoras, note-se). Essa proposta inicial foi desvirtuada aqui no Brasil, e a ABDR se transformou em uma agência basicamente repressiva, promovendo o fechamento de copiadoras e de sites como o mencionado.

O resultado dessa política equivocada é a mobilização dos estudantes contra as ações da ABDR. Pior ainda, identificando a questão do Direito Autoral como algo de interesse simplesmente das editoras, quando diz respeito fundamentalmente aos autores, que merecem e devem receber remuneração por seu trabalho. Daí que, em vez de pressionar por melhores bibliotecas, apela-se para o “jeitinho”: pastas de professores, sites de compartilhamento. A questão de fundo se perde, e as bibliotecas continuam sendo péssimas (a vontade é a de usar outro adjetivo, mas o decoro o impede).

Outro problema diz respeito às obras “órfãs”, livros que possivelmente ainda estão sob proteção da lei de direitos autorais, mas não disponíveis no mercado. É um problema sério, objeto de discussão em vários foros, inclusive internacionais.

O triste disso tudo é que, pela ineficiência e insuficiência das bibliotecas – públicas e universitárias – todos são prejudicados: alunos e o público em geral pelas dificuldades de acesso; autores e editores pela perda de renda decorrente da reprodução não autorizada.

Finalmente, uma última palavra sobre os editores. Independentemente da questão das bibliotecas, Ed Nawotka, o editor do site Publishing Perspectives, uma vez publicou um aforismo que gosto de repetir: livro pirateado é o que não foi colocado no mercado com preços e condições aceitáveis para os consumidores/leitores.

(Por Felipe Lindoso - jornalista, tradutor, editor e consultor de políticas públicas para o livro e leitura. Foi sócio da Editora Marco Zero, diretor da Câmara Brasileira do Livro e consultor do CERLALC – Centro Regional para o Livro na América Latina e Caribe, órgão da UNESCO. Publicou, em 2004, O Brasil pode ser um país de leitores? Política para a cultura, política para o livro, pela Summus Editorial. Mantêm o blog www.oxisdoproblema.com.br)

Enviada por Mirna Lindenbaum.

2 comentários:

  1. Aqui temos um bom exemplo de jornalista que escreve baseando-se em dados, fatos, artigo que merecia ser tema de um grande debate na sociedade.

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  2. Só um palavrão expressa o que eu achei do fechamento do Livros de humanas. Não eram apenas livros em circulação que eram oferecidos. Muitos livros esgotados e de difícil localização também eram oferecidos. O argumento do jornalista de que a ABDR defende a remuneração dos autores não tem cabimento por que: 1) O valor que os autores recebem é ínfimo, por que recebem depois que as editoras separaram a sua parte; 2) Compartilhar não diminui a venda dos livros impressos, como esse antropólogo afirma:

    "O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro defendeu a cultura de compartilhamento de livros, afirmando em seu Twitter que “Sites que permitem a leitura gratuita de livros de difícil acesso, esgotados ou absurdamente caros, são fundamentais para a difusão do saber. O que a internet perturba é o CONTROLE, pela editora, da relação entre autor e leitor. Ninguém perde economicamente. A questão é política. Exceto é claro no obscuríssimo mercado de livros didáticos, onde a instrumentalização do saber e a concentração de poder são a regra”.

    O antropólogo também acredita que o ataque ao site é “uma excelente ocasião para se inventariar o negócio do ‘livro didático’ no Brasil, das editoras ao MEC”. Ele aproveita para questionar os dogmas da ABDR e do mercado editorial: “Nunca vendi tantos livros (nunca foram muitos, mas enfim) como depois que meus livros entraram nas bibliotecas públicas da rede”, contou. Ele também afirma que “jamais COMPREI tanto livro como depois que pude começar a baixar livros GRATUITAMENTE pela rede”."

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